Ataques do governo à agricultura familiar colaboram com alta dos alimentos

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Pico de preços envolve também abandono de políticas públicas

O aumento atípico dos preços dos alimentos nas últimas semanas resulta da pandemia e de fatores econômicos conjunturais, mas não deixa de retratar os ataques do governo à agricultura familiar e à pequena propriedade, responsáveis por 70% da produção alimentar no País.

Um exemplo é o desmanche, por Bolsonaro, do sistema de preços mínimos e de estoques reguladores centralizados na Companhia Nacional de Abastecimento, recurso dos governantes anteriores para achatar picos de preços. A escalada inclui várias medidas provisórias que incentivam a grilagem das áreas de agricultura familiar pelos grandes fazendeiros do agronegócio voltado para a exportação.

O conjunto da obra põe em risco a segurança alimentar, que requer, segundo a FAO, que “todos, em todos os momentos, tenham acesso físico e econômico a alimentos suficientes, seguros e nutritivos que atendam às suas necessidades dietéticas e preferências alimentares para uma vida ativa e saudável”.

As altas dos preços dos alimentos pesaram no avanço de 0,24% do IPCA de agosto, sob influência da ampliação da demanda externa, do dólar caro, do auxílio emergencial e da inexistência de estoques estratégicos do governo. O preço do arroz acumula uma elevação de 20% e o do feijão, de até 30% neste ano.

As variações foram seguidas de temores quanto ao aumento da inflação, mas repasses de choques de preços de alimentos no atacado para o consumidor, sublinha José Francisco de Lima Gonçalves, economista-chefe do Banco Fator, não são automáticos, muito menos proporcionais e não contaminam os preços em geral.

“A taxa Selic e os juros de mercado caem sistematicamente desde meados de 2016, graças à queda da inflação, mesmo com choques de preços de alimentos”, destaca Gonçalves em relatório da instituição.

“Fica difícil afirmar que a alta dos preços no atacado vai perdurar e que será repassada para o IPCA. Dado o peso de tais itens, sua contribuição é grande, mas, se as famílias compram por preço maior, sua renda real cai e não compram outros itens, exercendo pressão baixista sobre seus preços.”

O pico de preços evidenciou a fragilização da capacidade de atuação do Estado. Entre as medidas consta a demolição da Conab com base apenas no fervor pró-mercado. Fundada em 1990, a empresa pública unificou a Companhia de Financiamento da Produção (CFP), criada em 1943, no governo Getúlio Vargas, a Companhia Brasileira de Alimentos (Cobal) e a Empresa Brasileira de Armazenamento (Cibrazem), instituídas em 1962 e 1963, no governo Jango Goulart.

A missão da Conab é gerenciar as políticas agrícolas e de abastecimento alimentar, para atender às necessidades básicas da sociedade, de modo a preservar e estimular os mecanismos de mercado, por meio de garantias de preços para os agricultores e programas limitados de compras. Em 2000, no governo Lula, a estatal começou a trabalhar com foco na agricultura familiar e em programas sociais.

“A crise alimentar de 2008 sinalizou um papel cada vez maior para a Conab de garantir estoques alimentares suficientes para mitigar os aumentos de preços globais e manter a demanda suficiente para a produção da agricultura familiar e o consumo das famílias”, chama atenção Fábio Veras Soares, do Ipea, coordenador de estudo sobre o assunto publicado pelo Centro Internacional de Políticas para o Crescimento Inclusivo da ONU. Esta estrutura, diz, “é crucial para implementar e estender a cobertura de políticas de demanda estruturadas para muitas populações vulneráveis e marginalizadas em todo o País”.

No ano passado, o governo anunciou, entretanto, a venda de 27 das 92 unidades armazenadoras da Conab. No auge das compras públicas para formação de estoques reguladores, em 2012, a aquisição de alimentos beneficiou 128,8 mil agricultores. No ano passado, foram apenas 9,7 mil. O pior momento ocorreu no governo FHC, que reduziu de modo drástico a capacidade de armazenagem da Conab, destaca a newsletter especializada O Joio e O Trigo.

O ataque à agricultura familiar incluiu a Medida Provisória 910, da regularização fundiária ou da grilagem, assinada em dezembro por Bolsonaro. A MP flexibiliza a regularização fundiária e concretiza duas demandas estratégicas dos ruralistas, facilitar a transferência para o mercado do estoque de 88 milhões de hectares das terras públicas da reforma agrária e ampliar de quatro para 15 módulos fiscais o tamanho dos imóveis passíveis de legalização por simples autodeclaração dos requerentes, que são grandes proprietários e grileiros. Em julho, o presidente decidiu acelerar a titulação com vistoria indireta das propriedades.

“Para regularizar 95% das 97 mil propriedades há legislação, o que falta é estrutura para fazer a titulação para os pequenos proprietários. O que o governo quer legalizar são as grandes áreas públicas que foram griladas e invadidas por fazendeiros e grileiros. Boa parte dessas áreas é habitada por indígenas, quilombolas, trabalhadores sem-terra, posseiros, ou seja, se ele pretende fazer a titulação só com base em imagens aéreas sem verificar no local o povoamento e eventuais disputas, aumentará ainda mais o conflito no campo e ampliará o problema ambiental”, dispara o deputado Nilto Tatto, da Frente Ambientalista do Congresso.

A desnacionalização do petróleo e o desmanche da Petrobras, que, após privatizar gasodutos e a distribuidora BR, quer vender também as suas refinarias sem aprovação do Congresso, ameaçam a autossuficiência em derivados de petróleo e gás, uma preocupação crescente diante da perspectiva de risco energético em 2025 com a possível insuficiência da oferta de petróleo para atender à demanda mundial, prevê a geóloga Patrícia Laier, diretora do Sindipetro do Rio de Janeiro. Os motivos incluem o declínio de descobertas e da produção dos campos convencionais. Os preços dos derivados de petróleo, vale lembrar, têm grande peso na cotação dos produtos alimentícios.

Fonte: cut.org.br